O Ford T é uma lenda da indústria automobilística. No Brasil, foi chamado de Ford Bigode. Isso porque o acelerador era junto ao volante e formava par com a barra de ignição (lembrando um bigode). Foi produzido entre 1908 e 1927 nos Estados Unidos. Não é exagero dizer que esse carro é um ícone da Revolução Industrial.

Imagem do Ford T.
(Foto: Arquivo wH.Ford et sa Ford T)

Em Foz do Iguaçu, os primeiros automóveis de que se tem notícia foram dois Ford T. Ambos possivelmente fabricados nos anos 1920 e que pertenceram a Harry Schinke e a Jorge Schimmelpfeng. Em 1941, o Ford “bigodinho” (como a esposa de Harry o chamava) já tinha algum tempo de experiência no transporte de pessoas em Foz do Iguaçu.

Além da Ford, outras montadoras fizeram sucesso nos Estados Unidos. Em 1937, a Chevrolet tinha um catálogo com 12 modelos de caminhões e utilitários para o mercado de transporte de mercadorias. Alguns foram exportados para o Brasil, como foi o caso do caminhão que aqui recebeu o nome de Tigre.

Catálogo com os modelos da Chevrolet.
Catálogo com os modelos da Chevrolet.

Há pouco mais de 80 anos, em novembro de 1940, um caminhão Chevrolet Tigre cruzou o Oeste do Paraná. Sabemos os detalhes dessa viagem porque o motorista, Maurício Jauquim, teve de prestar declarações à polícia. Ele trouxe um homem que se dizia perseguido político e atravessou a fronteira do Paraguai de forma clandestina.

Essas duas histórias nos ajudam a entender melhor como era, há aproximadamente 80 anos, a região onde vivemos. Não fez nem um século, mas em 1940 a Tríplice Fronteira era um lugar totalmente diferente do que conhecemos hoje.

O Ford T de Harry Schinke

Vilmar Schinke, neto de Harry, possui boas lembranças do avô e do veículo: “Meu avô contava que o Ford foi um presente de um argentino”. A gratificação foi em razão dos cuidados de saúde com uma família de argentinos.

A esposa de Harry, Marieta Schinke, em entrevista ao jornal Nosso Tempo, em 1981, esclareceu que o presente foi recebido de “uma família de Puerto Iguazú”. A família toda teve problemas de saúde, e Harry “tratou deles”. Depois de curados, como tinham dois automóveis, um foi dado de presente aos Schinkes.

Harry com a família. (Fotos: Memórias Cataratas)
Harry com a família. (Foto: Memórias Cataratas)

E o presente foi muito útil. Em uma cidade cujo trânsito era de carroças, o Ford “bigode” era uma novidade. E passou a ser de muita utilidade. Vilmar recorda que sempre que uma autoridade chegava a Foz do Iguaçu, o carro do seu avô era requisitado para fazer o transporte do aeroporto e para levar o visitante às Cataratas.

Empreendedor nato, Schinke vislumbrou duas novas oportunidades. A primeira foi abrir um posto de gasolina. Naquela época, só havia local de armazenamento de combustível do lado argentino da fronteira. Abrindo um local em Foz do Iguaçu, Harry evitava ir frequentemente à Argentina e podia abastecer outros veículos.

Em 1941, com a inauguração do Aeroporto do Parque Nacional do Iguaçu (hoje o clube Gresfi), as demandas cresceram. O veículo e o posto de gasolina também passaram a suportar procura por transporte e combustível da Panair do Brasil. A Panair era a empresa aérea que fazia conexões em Foz do Iguaçu de voos vindos ou a caminho de Assunção e Buenos Aires.

 Na foto, da década de 1930, três veículos “pé de bode” na garagem da casa da família Schinke. Os carros eram utilizados para levar turistas às Cataratas. (Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke)
Na foto, da década de 1930, três veículos “pé de bode” na garagem da casa da família Schinke. Os carros eram utilizados para levar turistas às Cataratas. (Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke)

A segunda oportunidade foi a abertura de um negócio pioneiro no ramo do turismo. A partir de meados dos anos 1940, Schinke aprimorou o negócio iniciado com o Ford T. Investiu em novos veículos, incluindo uma “jardineira”. O objetivo era transportar cada vez mais pessoas para visitar as Cataratas.

Com as devidas proporções da época, pode-se dizer que Schinke iniciou esses dois ramos de negócio a partir do Ford T. Alguns anos mais tarde, postos de gasolina e agências de turismo seriam ramos de negócio promissores.

O Chevrolet Tigre de Maurício Jauquim

Caminhonetes, furgões e caminhões da Chevrolet cada vez mais se tornariam comuns nos Estados Unidos, a partir de 1930. Além do mercado interno, muitas unidades foram exportadas. Algumas dezenas chegaram ao Brasil e foram vendidas no estado de São Paulo. Um desses modelos foi batizado no país como Tigre.

Para os padrões da época, o caminhão Tigre era relativamente grande. Os primeiros caminhões eram veículos muito robustos e preparados para as condições adversas do clima e das estradas. Uma viagem em 1940 poderia implicar muitos atolamentos e travessias de rios.

Foto: Arquivo Classic Car Brasil.
Foto: Arquivo Classic Car Brasil.

Em janeiro de 2021, a empresa Classic Car Brasil, especializada em veículos antigos, recuperou um Chevrolet Tigre ano 1934. De acordo com Mareze Júnior (Classic Car Brasil), nas condições da estrada dos anos 1940, é possível que a velocidade máxima atingida fosse aproximadamente 30km/h. Também é possível que o motorista viajasse com combustível reserva. Caso esse não tenha sido o caso de Maurício, ele teria procurado o posto de gasolina de Harry Schinke para abastecer. Mas essa é só uma especulação. Não há evidências de que o T e o Tigre tenham estado tão próximos.

No dia 13 de novembro de 1940, em Laranjeiras do Sul, Maurício Jauquim encostou seu caminhão Tigre em frente a um modesto hotel. Pouco depois de uma conversa, o chofer (a forma de se referir a motorista naquela época), seu ajudante e um homem de terno marrom embarcaram rumo à fronteira.

De acordo com os autos do processo, sob a guarda do Arquivo Público do Paraná, o homem de terno marrom tinha mais ou menos 40 anos. Disse para seus companheiros de viagem que estava fugindo para o Paraguai. Queria passar a fronteira sem ser percebido pelas autoridades. Não havia cometido crime, mas era perseguido “por política”.

Em 1940, para dirigir era preciso ter uma Carteira de Chauffer. O documento era um livreto que deveria conter informações pessoais e do veículo (Foto: Arquivo Público do Paraná)

Na metade do caminho, passaram por Cascavel e carregaram o caminhão com erva-mate. Apesar de já estar em decadência, a erva-mate ainda era o principal produto econômico da região. Depois de 26 horas de viagem (sim, o trajeto Cascavel-Foz do Iguaçu demorou tudo isso), chegaram ao destino.

O homem de terno marrom cruzou a fronteira clandestinamente. Maurício Jauquim foi encontrá-lo do lado paraguaio, porém fez a travessia da forma correta. Recebeu uma carta para levar até Curitiba e, então, receber pela corrida. Alguns dias depois, Maurício foi interceptado pela polícia.

Das declarações prestadas à polícia, pode-se concluir que a viagem de aproximadamente 300 quilômetros durou três dias. Há relatos de atolamentos e de interrupção da viagem por conta do mau tempo. A boa notícia era que parte da estrada estava em obras de melhoria, e um “novo traçado” para a estrada de Foz do Iguaçu estava em curso.

Em 1940, para dirigir era preciso ter uma Carteira de Chauffer. O documento era um livreto que deveria conter informações pessoais e do veículo (crédito: Arquivo Público do Paraná).

O transporte terrestre

As memórias recuperadas de ambos os veículos nos ajudam a compreender como era a região em 1940. Essas histórias lançam alguns raios de luz sobre esse passado não tão distante, dessa região que tinha outra dinâmica de transporte local e regional.

O carro de Harry Schinke, em Foz do Iguaçu, revela uma memória dos primórdios do empreendedorismo local na área de transportes. Apesar das limitações da época, havia uma crescente demanda por fretes e transporte local de passageiros. A partir de 1950, cada vez mais veículos chegariam à cidade para atuar nesse ramo.

A viagem do Chevrolet Tigre pelo Oeste do Paraná indica as dificuldades do acesso terrestre pelo lado brasileiro da fronteira. Pela Estrada Velha de Guarapuava, foram necessários três dias de viagem para vencer a distância de 300 quilômetros. Já em 1940, o “novo traçado” da estrada indicava que ações estavam em desenvolvimento para melhorar o acesso à região.

De fato, o acesso terrestre foi melhorado e ampliado diversas vezes até a conclusão definitiva da BR-277, em 1969. Em 1953, por exemplo, a rodovia era uma estrada de terra, mas já permitia o acesso de forma mais eficiente. Foi justamente em torno do traçado dessa estrada que empresas colonizadoras fundaram o que mais tarde seriam as cidades de Santa Terezinha, São Miguel, Medianeira, Matelândia e Céu Azul.

(Foto: Arquivo Público do Paraná)

Em 1959, no mesmo ano em que a BR-277 já estava concluída (mas ainda não totalmente pavimentada), o jornal O Trabalhador, que circulava em todo o Oeste do Paraná, trazia uma propaganda interessante em uma de suas edições. A oferta de serviços de transporte crescia na região, e Harry Schinke tinha concorrência no ramo dos transportes. (Crédito: Arquivo Público do Paraná)

Até 1950, a principal forma de acesso à Tríplice Fronteira era via Rio Paraná, por barcos que partiam dos portos argentinos de Buenos Aires e Posadas. Essa realidade mudou a partir do planejamento de importantes obras de infraestrutura que ligariam Assunção ao litoral do Paraná. O tratado para a construção da Ponte da Amizade, por exemplo, foi assinado em 1956.

Finalmente, nos anos de 1960, a rota terrestre Brasil-Paraguai estava consolidada. As viagens de barco entre Foz do Iguaçu e Posadas se tornaram um episódio da memória dos anos anteriores. A frota de veículos e do transporte local e regional se transformou radicalmente em 20 anos.  

Comentários

Deixe a sua opinião