Quando convivemos diariamente com algo, é fácil esquecer sua importância. A prova disso é que, em 2017, treze anos depois da implementação da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA), houve uma tentativa de dissolver a faculdade. 

A Unila é um microcosmo da diversidade cultural que existe em Foz do Iguaçu. O campus é sempre movimentado, com estudantes de diferentes países da América Latina se misturando.

No contexto da história acadêmica da América Latina, Unila desempenha um papel protagonista. Nasceu de uma visão que começou a ser materializada em 2007, quando uma Comissão de Implantação delineou os contornos daquilo que viria a ser o Instituto Mercosul de Estudos Avançados (IMEA), em parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Itaipu Binacional. Oficialmente, a UNILA foi criada em 12 de janeiro de 2010, quando foi assinada a Lei nº 12.189. 

No começo, a UNILA tinha cerca de 200 alunos, uma mistura vibrante de jovens provenientes do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Eles foram os primeiros a percorrer os corredores da universidade, estudando em uma seleção inicial de seis cursos de graduação.

Durante toda sua trajetória como instituição, seus valores e missão permaneceram os mesmos: unir a América Latina por meio do poder transformador da educação. Ainda assim, isso não foi o suficiente para que sua existência não fosse questionada ao longo de seus 13 anos.

O fim da Unila

Em 2017, o Brasil estava nas mãos do então presidente Michel Temer. Desde o início de seu mandato, “houve uma alteração muito significativa nas relações exteriores do Brasil, especialmente em relação à América do Sul e à América Latina”, palavras de Gisele Ricobom, professora de Relações Internacionais e Integração da Unila na época. Na visão da professora, foi o que tornou possível a ameaça à existência da universidade. 

Alinhado aos interesses do presidente, o deputado Sérgio Souza introduziu uma proposta de emenda à MP 785/17, que transformava a UNILA numa instituição regional do oeste do Paraná.

A MP 785/17 é uma medida que visa desregulamentar o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES, aprovado após décadas de pressão dos movimentos da educação.

Souza pedia a extinção de artigos da criação da Unila, que a caracterizam como uma universidade para a integração latino-americana. Como se não fosse suficiente, sugeria a possibilidade de integrar os campi de Toledo e Palotina, que integram a Universidade Federal do Paraná.

Essa proposta recebeu o apoio do senador Álvaro Dias, que levantou suspeitas sobre o conteúdo acadêmico da Unila, alegando que a universidade oferecia disciplinas atípicas, como a “descolonização epistêmica”.

Por outro lado, a Unila, que contava com um corpo docente composto em sua maioria por doutores, sempre se dedicou a questões relacionadas a problemáticas latino-americanas. Na época, a universidade tinha 3.575 alunos matriculados nos 29 cursos de graduação e 300 nos 13 cursos de pós-graduação, todos bem avaliados pelo Ministério da Educação.

Contudo, a resistência à Unila não é apenas nacional. Malu Nogueira, estudante do sexto semestre de Saúde Pública na Unila, em 2017, afirma que “a cidade está contra a universidade”. Esta resistência foi incentivada até mesmo por algumas mídias da cidade.

Alguns moradores de Foz se manifestam a favor da extinção da Unila. A hostilidade não apenas se limita à política educacional, mas também se estende a comentários xenofóbicos, dada a característica da universidade de atrair estudantes de outros países.

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Claras motivações 

Sérgio Souza era presidente da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados e forte representante da bancada ruralista. Em sua proposta, o deputado citou algumas empresas do agronegócio que seriam beneficiadas pela medida, como grandes cooperativas da região.

Esta proposta gerou preocupações significativas. Houve um temor de que o objetivo subjacente seja desestabilizar o perfil integracionista da UNILA.

“Defendemos uma universidade regional que tenha compromissos com os brasileiros e, principalmente, com as causas do Oeste do Paraná. A estratégica região é uma das mais produtivas do Brasil e precisa ter um retorno à altura de suas potencialidades”, afirmou Souza para imprensa. Ele acreditava que um processo educacional regionalizado poderia potencializar o desenvolvimento do Oeste paranaense, gerando empregos e renda.

A justificativa oficial do projeto era a implementação de novos cursos de graduação, alinhados com as características econômicas e sociais da região. “Os novos cursos despertarão não só o interesse da sociedade, mas também promoverão o desenvolvimento social e a distribuição de renda no Oeste”, afirmava Souza.

Ele destaca que o Oeste do Paraná, com aproximadamente 1,3 milhão de habitantes e próximo ao Mato Grosso do Sul e Paraguai, tem experimentado uma expansão significativa, graças ao investimento em cooperativas e indústrias, incluindo setores de máquinas agrícolas, automotivo e têxtil.

Resposta das universidades

Diante desta situação, o reitor da UNILA, Gustavo Oliveira Vieira, e o diretor do campus de Palotina da Universidade Federal do Paraná (UFPR), concordaram em defender a UNILA e a necessidade de respeitar projetos já consolidados. “Uma nova proposta não passa pela destruição de projetos que já estão consolidados nos territórios, sem respaldo político, jurídico e cultural da sociedade, que é diretamente atendida por tais projetos”, afirmaram.

Essa resistência foi reforçada por um abaixo-assinado lançado pela UNILA, denominado “Movimento em defesa da Unila (Lei 12.189/2010)”, que já havia recebido mais de 14.500 assinaturas até a manhã de domingo (23). Além disso, quase 50 entidades da sociedade civil organizada, instituições públicas e privadas, tanto brasileiras quanto internacionais, já manifestaram apoio à UNILA.

Vieira expressou preocupação com a falta de diálogo na proposta de Souza. “O parlamentar não discutiu a proposta com a comunidade acadêmica e nem com a população local. A emenda representa uma afronta à autonomia universitária, não apenas à UNILA, mas a todo o sistema de universidades federais brasileiras”, declarou.

A UNILA desempenha um papel significativo na região do Oeste do Paraná, sendo responsável pela criação de 62% de todas as novas vagas do ensino superior na região. Além disso, 50% de suas vagas são destinadas a não-brasileiros, proporcionando uma rica diversidade cultural e acadêmica. 

A UNILA lançou a página “Unila Resiste” no Facebook e uma petição online, que já reuniu mais de 10 mil apoiadores. O objetivo dessas iniciativas é destacar a importância da integração latino-americana e os riscos que a proposta de Souza apresenta para a comunidade acadêmica e para a população local.

A reitoria da UFPR, por sua vez, afirmou que foi “surpreendida” pela proposta e destacou que nunca foi consultada a respeito. Em uma nota, a direção da UFPR expressou “surpresa, consternação e indignação” com a proposta do deputado. A instituição enfatizou que as universidades possuem identidades, solidariedades e histórias, e não são blocos que podem ser desmontados e montados de acordo com desejos ou interesses individuais.

A sociedade

É evidente que a emenda proposta pelo Deputado Sérgio Souza gerou um intenso debate, com posições variadas emergindo da sociedade. Contudo, a resistência à proposta foi massiva e contou com o apoio de personalidades proeminentes e entidades influentes.

Desde que a notícia da emenda se tornou pública, em 14 de julho, várias autoridades manifestaram apoio à Unila, conforme relatado pela Rádio Cultura de Foz do Iguaçu. Entre eles estão os senadores Cristovam Buarque, Roberto Requião e Gleisi Hoffmann, além do ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação, Fernando Haddad. A defesa da Unila também foi expressa pelo reitor da UFPR, Ricardo Marcelo Fonseca, e pelo ex-diretor de Itaipu, Jorge Samek.

A defesa da Unila não se limita a essas figuras. De fato, a resistência à emenda proposta por Souza inclui o apoio de cerca de 100 entidades diferentes. O Grupo 100fronteiras, uma organização de mídia familiar independente dedicada à produção diária de jornalismo local de soluções, produziu na época um editorial sobre o assunto.

Um editorial é um artigo de opinião que representa a posição oficial de um jornal ou revista sobre um tópico específico. Ele é geralmente escrito por um editor ou um membro da equipe editorial e reflete a visão da publicação como um todo, em vez da perspectiva pessoal de um autor individual.

O verdadeiro valor dos editoriais reside na sua capacidade de fomentar o diálogo. Eles não estão lá para impor uma visão de mundo, mas para iniciar uma conversa, para provocar um debate, para convidar à reflexão. Eles são, no final das contas, um convite à participação democrática, uma lembrança de que todos nós temos um papel a desempenhar na construção do nosso futuro comum.

Confira o editorial abaixo do 100fronteiras:

Caro leitor trinacional,

peço permissão para alguns minutos de sua atenção, pois vou abordar o futuro de nossos filhos.

É a primeira vez que venho desta forma conversar com você. Quero transformar este diálogo em um papo franco e honesto. Desde a primeira edição, buscamos a integração da Tríplice Fronteira e sonhamos com uma região em que a diversidade seja respeitada e tenha uma educação de extrema qualidade, de nível internacional. Foi na educação que países como a Finlândia, Japão, Coreia do Sul e Singapura saíram de Estados subdesenvolvidos para potências mundiais. 

Nós moramos em um lugar único, sem fronteiras, com as mais diversas etnias vivendo em paz, por isso acreditamos e nos posicionamos favoravelmente a manter a ousadia e o privilégio de continuar a ter em nossas terras a Universidade Federal da Integração Latino-Americana. A inovação vem da diversidade. Tudo que está errado pode ser consertado, o rumo pode ser alterado, mas não podemos ter a covardia de abrir mão de um projeto que nos transforma em um lugar único, polo do conhecimento da América Latina.

Do ponto de vista econômico, a presença da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em Foz tem movimentado vários segmentos, sobretudo moradia, transporte e alimentação. São 3.600 acadêmicos, quase mil funcionários, investimentos, projetos e ações que resultam num impacto de mais de R$ 200 milhões por ano em Foz do Iguaçu.

A instituição conta com alunos de diversas regiões do Brasil e de outros 19 países da América Latina: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Já os docentes são oriundos do Brasil e de outros 15 países, com representantes da América Latina, Europa, Ásia e África.

Além disso, a Unila possui 15 cursos já avaliados positivamente pelo MEC e trouxe para Foz o tão sonhado curso de Medicina em 2014. Ela é importante para os alunos, professores e funcionários, mas também é importante para nós.

Nós podemos e ousamos ser protagonistas da história. Nossa posição é pela educação, cultura, diversidade e inovação. Nossa postura é a favor do desenvolvimento da região. Por isso apoiamos a causa da Unila.

Este editorial foi originalmente postado em 20 de julho de 2017 na página do Facebook do 100fronteiras.

O fim do fim

A resistência ao desmonte da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) culminou em uma vitória significativa. No dia 15 de agosto de 2017, o deputado federal Sérgio Souza (PMDB-PR) decidiu retirar a emenda aditiva à Medida Provisória n° 785 de 2017, que visava transformar a Unila em Universidade Federal do Oeste do Paraná (UFOPR). A decisão surgiu após intensos debates e resistência expressa tanto por figuras políticas de alto escalão quanto por entidades da sociedade civil.

O movimento para manter a Unila e sua missão de integração latino-americana foi apoiado por um amplo espectro da sociedade, incluindo acadêmicos, estudantes, políticos e cidadãos comuns. Eles se manifestaram de várias maneiras, desde declarações públicas de apoio até abaixo-assinados. Esse movimento foi fortemente articulado, tanto em nível local quanto nacional, e evidenciou o amplo apoio à manutenção da missão e visão da Unila.

A retirada da emenda por parte de Souza pode ser vista como uma demonstração do poder da sociedade civil e do diálogo na política. Este é um exemplo claro de como a voz coletiva pode ter um impacto significativo na tomada de decisões políticas e na proteção de instituições valiosas.